Palavras apócrifas / Cartas do meu castelo
Cartas do meu castelo / Palavras apócrifas
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Pensar Diverso e Outras Claridades Textiverso - Leiria
NÃO CANTABILE
... Convenhamos
que uma moeda (euro) que nem dá para cantar não pode ser boa. Que
tem pelo menos um aspecto muito útil, tem. Basta o poder
caminhar-se pela Europa dos 15-3 sem necessitar de cambiar
dinheiro. Uma comodidade excelente. Que tem uma característica
assaz pouco positiva, tem: rapidamente nos apercebemos como são
frágeis os nossos euros quando passámos a fronteira. Não é que
valham menos. Gastam-se é mais depressa. Mas não dá para
cantar, o que é deficiência grave. Falta-lhe a tónica. Nem
podemos dizer, quando estamos lisinhos de todo «– não tenho nem
um tostão para mandar cantar um cego.» Se experimentarmos
substituir a moeda tostão por euro, logo detectaremos a
ausência de musicalidade na palavra. Embora encha muitos bolsos
– não confundir com muito os bolsos – Não enche o ouvido. E se
os olhos também comem, os ouvidos também comprovam.Para melhor
avaliar esta séria incapacidade, basta assistir, às
segundas-feiras, à extracção das lotarias. Um horror! Corre tudo muito
bem desde o andar da roda, a cantoria dos números, até que
tenham de classificar, em cifra corrente, o valor do prémio. As
"cantadeiras" da Santa Casa, bem afinadas e correctas no seu
pregão, bem se esforçam por dar ênfase à entoação. A moeda é que
não ajuda. Começa com uma sílaba sem força e acaba na seguinte,
mais débil ainda. É uma palavra anémica. Os (as)
pregoeiros(as) bem elevam a voz «– Quinhentos miiiiiil ... (um
ligeiro colapso) Eu... (e logo a derrocada) ros.» Basta
experimentar com outra cifra, como por exemplo: «–
Quinhentos miiiiiil Paus!» para logo se confirmar o raquitismo da
palavra Euro. É um invertebrado, uma lesma, não tem esqueleto! É um
termo que parece inacabado, a que falta qualquer coisa. É um
gato sem rabo. O premiado da lotaria ouve sem
entusiasmo o anúncio da sua sorte. Sem emoção. Nem rebenta as
molas da poltrona. A palavra final não o empurra para o salto.
Fica-se a olhar a pantalha, britanicamente fleumático, e
comenta para a cara-metade «– Olha, querida, parece que ganhámos na
lotaria.» E vai dormir como se nada houvesse acontecido na sua
vida. Apesar do valor ser o mesmo, salvo, evidentemente, os
tais acertos de "milésimos" para arredondar, como dizem os
agentes económicos – entenda-se para baixo ou para cima ao sabor
do interesse dos tais agentes. Para não falar da imensa
sonoridade que tinha o pregão «– Cem miiiiiil Contos!» Esta sim
que era cifra sonora, "alegro com molto e cantabile".
(In Pensar Diverso)
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