Poema de Outono (O próprio poema)
Aos interiores desolados
onde musgos e heras
são a doçura restante
do viço que lhes roubou
a selvagem invasão das silvas
tecida nos litorais
de engodo.
POEMA DE OUTONO
Os olhos detrás da janela
seguem as lágrimas de chuva na vidraça
num Outono avançado
quando as árvores esfíngicas num reino de névoa
povoam a encosta do outro lado do vale
envolta na penumbra matizada do amarelo e rubro
das folhas das cepas desprezadas
isentas de subsídios
e de braços.
Em breve seria o tempo da poda e empa
que já lá vai nas águas do rio em roldão de barro
e de esquecimento.
Não há vida nos trilhos ou nas estradas
apenas máquinas
ocupando o chão e o silêncio
que vista detrás da vidraça
a encosta do outro lado do vale
já não é um sítio
apenas um mapa
que sítio tem gente amando a terra.
Pode ir‑se por esses casais fora
sem encontrar vivalma a quem dizer bom-dia
o medo habita as sombras
e a coragem abandonou os braços
deixando a via livre aos vermes da solidão.
As folhas caídas apodrecem
em leitos de água e lama
e traem os animais nas tocas
ao abafarem os passos dos caçadores
que vagueiam por montes e vales
em dias inúteis com cães e armas
perseguindo a lembrança
de lãs e penas presas nos tojos
teimosos numa extinção
que concluíram já.
As aranhas lançaram fios
e teceram
finíssimas teias de seda
ligando os ramos das moitas
onde as gotas de orvalho preguiçam
como sinhás em rede colonial
de que muitos saudosos se lembram
e sonham utilizar ainda
em prejuízo de outrem.
As agulhas dos pinheiros parecem o cabelo
do Outono a sair do banho
escorrendo nevoeiro
na expectativa do vento suão
que lhes enxugue os fios
numa agitação Beethoveniana
de desgrenhado génio
produzindo em sofrimento
árias para violino
gemidas nos fios dos telefones
ao longo dos caminhos desertos.
Árias que num andante crescendo
alegro vivace com brio
presto prestíssimo
levam as telhas dos infelizes que já não vivem nas cabanas
de telha lusa vã
e chão de terra pisada
arrastados que foram pelos vendavais
para barracas de zinco de ao pé da foz do rio
que lhes sorriu na ilusão
duma praia litoral
com sol um mês por ano.
O musgo cobre as pedras
adoçando‑lhe os gumes e arestas
numa capa de ternura
arrastada pelo tempo
com cicatrizes de experiência
enquanto os cogumelos perfuram
o manto de podridão e exibem
a monotonia dum branco doce
ou a garridice letal da sedução
na esperança justificada
de serem em breve os únicos seres à face da terra,
além dos melros
– os tordos foram abatidos antes da azeitona tingir –
que vão viver muitos anos de fartura
por essas encostas além
onde as oliveiras eternas
magnânimas e generosas
maltratadas por entre as pedras
ainda oferecem o fruto atirado aos pássaros.
Atrás dos muros dos jardins
dos novos palácios
altos acima dos olhos
a perder de altura
vislumbram‑se as árvores exóticas
sempre verdes
por sacrifício da sede de muitas fontes
que nem a chuva de Outono mitiga
impedida de entrar na terra
por decretos de alcatrão.
Um diospireiro solitário
despiu o agasalho das folhas
em favor dos frutos
talvez os frutos de oiro
do jardim das Hespéridas
roubados pelo gigante
há muitos séculos
e que parecem bolas
monotonamente coloridas
numa árvore de natal de quem não O tem
nem Árvore
Já nem o Natal transporta o algodão macio
das esperanças novas
que abria nas crianças rumos de mais além
sem fim à vista
por ter início decretado
no acender das lâmpadas municipais
quando o autarca com um discurso do ano passado
inaugura o interruptor da electricidade
e acaba quando as luzes se fundem antes das andorinhas
trazerem a Primavera,
que não vem por ela
com horário certo
como sempre veio ao longo da memória
tem se ser empurrada senão fica por lá
nas asas cansadas de aves perdidas sem norte
com frios de todo o lado a tolher‑lhes
a orientação congénita
e sem aves não há primavera
ainda que o sol seja por decreto
colocado no Zénite
acima das nossas cabeças
para fazer do arco-íris o ludíbrio
do nosso contentamento.
E além da vidraça,
na encosta do outro lado do vale
andam ventos a lavrar as ramas
das árvores silvestres
que recuperam o sítio em tempos expropriado
para pão e vinho
enquanto a enxurrada
leva para mais longe
a terra inválida de cereais e frutos
que lá longe na foz do rio
após trespasse a novo dono
valoriza ao ver‑se semeada
de candeeiros e raízes de cimento
com homens de chapéus de chuva
a buzinar impropérios.
E com a lama são arrastados
os olhos de quem fica atrás da vidraça
a fazer de conta
que tudo há‑de voltar
na boca do cachorro que foi atrás do pau
caído na corrente
onde os moinhos se cobrem
de musgo e heras
enquanto a farinha nasce espontânea
nos porões dos navios
ancorados nas docas
sem precisar espigas.
Pardais aflitos com os ninhos húmidos
encolhem‑se nas moitas enquanto espreitam
sementes por entre as pedras
onde caibam bicos
que nas eiras inúteis há muitos anos
já nem a grainha das uvas vai a secar
e subsídios não alimentam pássaros
enquanto os cães sem temer a chuva
vão de cerca em cerca
ociosos
procurando ossos
farejando cios.
Na base da encosta do outro lado do vale
viceja no lameiro que margina a água
um campo verde
a morrer de ciúmes
por não ser estádio de cidade de foz de rio
assim mais útil no jogar da bola
pastos não são precisos já
que para Bruxelas se roga
e de Bruxelas vem
o gado da nossa indigência.
O lume na lareira aquece só o frio exterior
que na alma lavra um gelo sem lenitivo
eivado do desgosto de já não ser
de origem própria mas importado
além das linhas que nunca houve
mas existiram e fizeram mortes
quando havia pão de um lado e do outro fome
linhas que apenas os audazes passavam
para regressar contando as maravilhas
descobertas na outra banda.
Esconder a linha misturou pão e fome,
desta mais e daquele menos
os braços ficaram vazios que nem trabalho rende
calor para enfrentar a neve
que se prevê nos boletins da meteorologia
deste inverno que se avizinha longo
com muitos nevoeiros à janela
e lareiras de cinza no coração
enquanto os subsídios se escoam
nas mãos dos outros.
Já não é a chuva que parece choro
nas vidraças da janela
mas os olhos detrás dela
que fazem uma chuva de lágrimas
nas vidraças da janela.
Abadia, 3/12/2000
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